"Os anos 1950 foram uma grande época, se você fosse um homem", diz o narrador em off.
Uma mulher, apressada e aflita, coloca seus pertences e os de sua filha
no porta-malas do carro estacionado em frente à casa. Já na estrada, a
mulher acelera e, sobre o banco da motorista, sua mão segura a da
criança.
A mulher, no caso, é a pintora norte-americana Margaret D.H. Keane, em 1958. E a cena descrita acima é a que abre "Grandes Olhos" ("Big Eyes", 2014), novo filme de Tim Burton que estreia nesta quinta-feira (29).
Margaret
não só deixou seu marido, Walter Keane, como o acusou publicamente de
usurpar dela a autoria de suas pinturas, que enriqueceram (e muito) o
casal. Durante os dez anos de casamento, Walter, também pintor, se valeu
de compartilhar seu sobrenome com Margaret para se apresentar como
autor das obras ultra populares dela.
As pinturas de Margaret são
de crianças, mulheres e animais com olhos hiperbólicos e desolados. São
reflexo direto da latente sensibilidade da pintora - característica que
ela teve de contrariar para assumir suas obras e autonomia como
indivíduo.
Walter usou como trampolim para si essas (supostas)
fragilidades de Margaret. Ao contrário dela, ele sabia como vender as
obras. Sua lábia, simpatia e forte presença garantiram aos quadros
acesso a círculos estratégicos. E a ele, total domínio sobre sua esposa.
Margaret chegou a pintar 16 horas por dia, enclausurada num estúdio de
cortinas fechadas e porta trancada, sem amigos e isolada de sua filha,
único fruto do casamento anterior. Walter tinha o dinheiro, a fama e,
como Margaret contou ao Guardian,
as ameaças na ponta da língua. E ela, por sua vez, tinha uma criança,
um segredo que podia lhe constranger e medo de seu marido. A má recepção
que o mundo das artes já dava às mulheres artistas reforçava a
situação.
No entanto, a insegura, silenciosa e sensível Margaret não é a coitadinha da história. Ela é a heroína.
Em sua pertinente palestra no Ted sobre o poder da vulnerabilidade,
Brené Brown, pesquisadora da Universidade de Houston, afirma que não há
como separar o "mau sentimento" (medo, vergonha, decepção) do "bom"
(gratidão, felicidade, prazer). Quando enfraquecemos um, também o
fazemos com o outro. Segundo a assistente social, ignorar nossas
vulnerabilidades implica em não sentirmos o que há de bom. O que nos
deixa vulneráveis. E aí começa um ciclo. Em entrevista à Forbes, Brown define vulnerabilidade como "incerteza, risco e exposição emocional".
Isto
nos faz voltar à Margaret Keane. Walter abusou psicologicamente dela. E
ela lhe aplicou um belíssimo chute no traseiro, que teve duas fases: o
abandono que ele não esperava e um processo judicial. Este último serviu
para identifica-la como a artista que criou o que tanto vendeu, fez
sucesso e deixou marca na história da arte contemporânea. Porque sozinha
ela já era o suficiente.
Margaret é a mulher que, num contexto
ainda mais machista que o de hoje, arriscou atear fogo às mentiras que a
rodeavam - mas que, antes disso e para isso, abriu-se ao mundo para
mostrar suas feridas.
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